quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

ENTREVISTA COM FRANCISCO ALVIM


ENTREVISTA CONCEDIDA POR FRANCISCO ALVIM, EM 23 DE JUNHO de 2007, EM BRASíLIA/DF, COMO PARTE INTEGRANTE DE PESQUISA DE CAMPO MESTRADO – UFMS – SOBRE A POETA MARIA ÂNGELA ALVIM. ENTREVISTADOR: mestrando Antonio Luceni dos Santos, sob orientação do Prof. Dr. José Batista de Sales.


Como ocorreu a aproximação de Ângela Alvim com a literatura?

Eu não saberia dar uma resposta muito precisa com respeito a esta pergunta porque eu não a acompanhei... a diferença de idade entre  mim e a Ângela é considerável; ela é a mais velha dos cinco irmãos, são onze anos de diferença. Então, quando eu percebo Ângela como uma escritora, como uma pessoa de expressão, é exatamente quando ela publica o Superfície... eu estava com doze, treze anos, por aí. Eu não tinha próprio, a literatura pra mim não existia, mas a publicação de Superfície foi muito comentada na família, e eu comecei, então, a ficar atento àquela dimensão da vida de minha irmã, aquela dimensão literária, que eu também não situava direito porque me faltava qualquer tipo de formação ou indicação literária nessa fase da minha vida. Mas eu fiquei muito impressionado com o que eu vi em casa a respeito do lançamento, e me lembro perfeitamente que foi até, expressamente eu soube que o livro tinha sido lançado numa papelaria-livraria que, nessa época, em Belo Horizonte tinha grande projeção na avenida Afonso Pena, que era Oscar Nicolai... eu tinha me esquecido por completo e foi justamente com sua vinda aqui esse nome me veio de repente, um nome que eu já procurei na memória e não tinha encontrado e foi esse nosso encontro que possibilitou essa recuperação do nome, Oscar Nicolai. Bom, e tinha uma vitrine inteira de Superfície, aquilo me impressionou seriamente e foi a primeira revelação de Ângela como literata. Agora, o que a cercou, as pessoas, a amizade, a formação dela, de onde surge esse interesse pela literatura, eu sei que neste período, por exemplo, nós estamos falando dos anos 50 (51,52...), a geração dominante era a 45... eu me lembro vagamente, até, da presença, lá em casa... nós morávamos na rua Rio Grande do Sul, no bairro de Lurdes, em Belo Horizonte, que era um bairro, naquele época recente, hoje é quase periférico, mas eu me lembro da presença (não sei se é uma lembrança meio fantasiosa...), a presença de Bueno da Rivera. O nome “Bueno da Rivera” me impressionou, quer dizer, é um nome raro, de conotações espanholas, possivelmente... eu tenho uma vaga idéia que ele freqüentou... que era amigo de Ângela. E o Bueno, depois, no correr dos anos, eu fui ver, é um poeta interessantíssimo, um grande poeta... e pouco conhecido, pouco divulgado, pouco difundido e, agora, praticamente esquecido, mas é um poeta expressivo da literatura, eu não diria apenas mineira, mas brasileira... eu fui ver isso depois e me deu uma impressão muito forte. E dessa época tinha lá o Emilio Moura que possivelmente ela conhecesse, não sei... não tenho referência se ela o conhecia, tinha Henriqueta Lisboa... tinha um meio literário... tinha o Fritz Teixeira de Sales, esse eu me lembro que ela se referia, era amiga, conhecia e tudo mais... Quer dizer, a Ângela tinha uma relação com o meio intelectual e artístico de Belo Horizonte, no meio literário... eu não me lembro de referências de pintura dela... eu sei que Guignard nesse período tinha uma escola que era até lá, no jardim público de Belo Horizonte, uma escola de pintura, e formava jovens pintores... é possível que ela tenha tido, já que ela tem essa sensibilidade plástica que a gente vê nas cartas, os desenhos e tudo mais... gostava muito de fazer, aprendia essas letras... iluminuras! e a caligrafia.

Como era a relação de Ângela com a escrita? Ansiosa, truncada, angustiante... tinha uma rotina de escrita?

Na seqüência do que conversamos antes, eu não me lembro de ver Ângela, nunca, também mais tarde, até quando eu já tinha sofrido bastante influência dela, porque a influência dela na minha própria descoberta da literatura... eu descobri a literatura através de Ângela... já tardiamente no convívio com ela, com mais idade, já na minha primeira mocidade, dezessete, dezoito anos... eu nunca me lembra dela sentada numa mesa, fazendo poesia, nunca... não tenho essa idéia... quer dizer, a maneira, a composição... aí ela já estava morando conosco... é verdade que a saúde dela já estava muito abalada, mas eu não me lembro dela concentrada... talvez, a não ser... não tenho a lembrança dela trabalhando, mas certamente, eu cruzava com ela no apartamento, e ela devia estar trabalhando, e eu devia ter visto ela trabalhando no nosso apartamento em Laranjeiras, lá da General Glicério... trabalhando no texto da Carta ao cortador de linho, do qual tenho esse orgulho, no fundo, de ter sido a pessoa que a animou, a incentivou a escrever o texto, porque havia um concurso, ela já estava bastante doente, eu achava que era uma atividade que podia, de alguma maneira, contribuir para o bem-estar dela, não é?... Além do que, tinha mais do que isso, não era apenas uma percepção, disto eu estou seguro, porque a poesia dela, quando se revelou pra mim, se revelou como uma totalidade, quer dizer, a percepção que eu tive da poesia dela, e da importância, e da grandeza da poesia dela, me chegou de chofre, e eu sabia que ela ia escrever uma coisa extraordinária, eu tinha certeza disso. E não era apenas essa primeira preocupação do bem-estar, de ocupá-la, vamos dizer assim... era certeza de que dali sairia uma obra-prima, como de fato saiu. Angústia, propriamente, eu não senti nunca. Ela tinha uma atitude, ela era uma pessoa... não que se achasse, ou que se vangloriasse, ou que se colocasse numa posição de poeta, essa mítica do poeta como um ser de exceção, nunca senti em Ângela... ela era uma pessoa de exceção, mas por ser quem era, quer dizer, uma pessoa humana, de uma dimensão humana fora do comum, era uma pessoa de uma sensibilidade que você sentia, mas ela não se apoiava sobre isso. Inclusive por conta, eu acredito, do compromisso social que ela teve, no sentido do trabalho, e a percepção da importância do trabalho, do trabalho que ela fazia.

Ela falava em publicar ou simplesmente produzir, escrever...?

A maneira como ela chegou a publicar Superfície, nos seus vinte e poucos anos, eu não acompanhei, como disse, porque se insere naquele contexto anterior: muito menino, interesse por futebol, aquelas coisas todas... mas eu também me lembro, vagamente, da presença do editor, João Calazans, que foi quem a editou. A elaboração dos poemas eu não sei, não tenho referências maiores... Lucinha, seguramente, vai poder lhe dizer muito mais coisas a respeito disso e de muitas outras coisas que eu estou falando. Mas, depois que ela publicou Superfície, e eu já estou falando de um período, também, da minha vida e de nossas relações que é esse que vem logo em seguida, eu já mocinho e já com a revelação da literatura que peguei através dela e, sobretudo, da poesia, eu me lembro dela trabalhando o segundo livro e das repercussões, realmente, que Superfície tinha provocado, não é?

Barca do tempo...?

Exatamente... Barca do tempo. Eu me lembro que ela fez uma edição muito bonita desse livro, com os poemas dela que eram muito diferentes, distintos dos de Superfície. Superfície eram poemas minimalistas, de certa forma... não o minimalismo que viria depois e que o irmão, inclusive, aproveitaria... mas eu acho que ela teve um papel nisso, inclusive na procura de uma poesia condensada... E na minha própria poesia eu senti essa presença dela, sobretudo nos poemas menores, no Sol dos cegos. Era uma poesia minimalista, mas essencial, de essencialidades. E Barca do tempo ela já trabalhava o soneto, trabalhava formas fixas e no fluxo daquela, eu acredito, de uma... adorava, o grande poeta pra ela, o poeta que era uma presença permanente, uma referência permanente era Rilke. Ela tinha adoração por Rilke. Aí, os poemas dela desse período eram poemas... e também Drummond, naturalmente, no período Claro enigma, quer dizer, já era uma evolução da poesia brasileira, no sentido diferente daquele primeiro do Superfície. Ela trabalhava este livro, que era um livro que tinha um lado, vamos dizer assim, de objeto, que ela dava uma atenção extrema. Este livro passeava pela casa, de um papel meio apergaminhado, uma capa dura, que você tirava através de uns parafusinhos... com os recursos da época que... nós estamos falando dos anos 50, recursos gráficos da época que não eram os de hoje. Então, era um livro muito elaborado... não eram poemas datilografados, eram naquela caligrafia de quem tinha aprendido... e este objeto, vamos dizer assim, eu acompanhava... e a preocupação de que, de vez em quando, ela tinha que abrir aquilo tudo porque surgia um poema novo. E isso ela nunca publicou.

Então, você já via nisso, nesse exercício uma intenção de publicar...?

Ah, sim! Permanente. Eu nunca notei em Ângela, a não ser uma vez que... ela já bastante doente, uma coisa que me impressionou, e ficou pra sempre gravado, entre muitas coisas que ocorreram na minha vida com ela...ela me estimulou muito, como eu lhe disse, foi ela que me conduziu...  eu conto um pouco porque tem a ver um pouco com a própria maneira dela encarar a poesia... ela me animou muito. Ela tinha uma agendazinha pequena, alemã... (eu já contei isso em algumas oportunidades...) uma agenda alemã, muito bonitinha, e eu achei tão bonita que eu a roubei. Eu era menino... nessa época, um menino meio troncudo... eu devia ter uns treze anos, por aí... quatorze. E aí eu comecei a imitá-la, escrever uns poemas, imitando ela... Foi a primeira manifestação da admiração... eu já tinha lido Superfície, e aquele universo literário que era, até então, inteiramente vedado, começou a se abrir pra mim, mas sem eu dizer isso a ela. Ela me perguntou muito se a tinha visto, perguntou a família toda... e eu escondendo a agenda. Um belo dia, ela descobriu nos meus guardados, ela resolveu... (risos), e foi lá e estava lá a agenda. Ao invés dela ficar furiosa, ela tinha o gênio forte, ela podia ficar, realmente, muito brava, embora ela fosse uma pessoa de uma mansidão absoluta, mas tinha essas reações de um temperamento forte... ao invés dela, enfim, me censurar, ela falou: “Olha, eu gostei muito! Gostei muito de suas coisas... eu vou te dar de presente essa agenda.” Ela me incentivou neste sentido, mas quando ela adoeceu bem, eu me lembro, um dia ela me abraçou no corredor, ela falou assim: “Deixa a poesia... isso só traz sofrimento.” Foi a única vez que eu vi... disse algo aproximado, enfim, não terá sido exatamente isso, mas com uma intensidade muito forte.

Ângela, conforme a gente observa, foi uma pessoa muito engajada, sobretudo no período em que ela exerceu as funções de poeta, assistente social etc. Você acha que, de alguma forma, estas coisas todas tiveram participação na poesia de Ângela Alvim?

Esta questão, realmente, é uma questão muito rica. Eu acho o seguinte... esta experiência social dela, que eu também... eu tenho sempre que fazer essa reserva pela diferença de idade, essas coisas todas..., mas ela foi me chegando aos poucos, a consciência mais ampla do que terá sido, do que poderá ter sido essa vivência social de Ângela. Que também se liga, de alguma maneira a experiência religiosa dela e a literária. Mas a minha tendência é achar que estes três universos não se comunicam, ou se se comunicam, se comunicam tangencialmente, como uma espécie de sombra, que um projeta sobre o outro, mas não de uma maneira direta; Ângela não é um poeta realista e não é um poeta, a meu ver, religioso, embora ela seja uma poeta metafísica. Mas é uma complicação... é uma poesia de uma complexidade, eu acho que, sob muitos aspectos, inédita no quadro brasileiro. É de uma densidade... que ela tem esses universos, quer dizer, que a vida e a experiência dela como ser, mas que se tangenciam e que não se interpenetram, vamos dizer assim. E, ao mesmo tempo, a sombra é uma interpenetração sutil, uma luminosidade que está solta pelos três planos. O interesse social dela era enorme... eu fui me dando conta, também, no correr do tempo, porque eu próprio, a minha consciência dessa problemática social chegou muitos anos depois, e ela viveu isso no plano profissional, como assistente social... acho que a primeira turma de assistente social no Brasil, ela estava nessa primeira turma. E eu me lembro da compaixão de Ângela... isso aí entra esse plano, justamente, religioso, que eu tenho a impressão... um pouco a projeção da sombra da religiosidade dela na compaixão em vários episódios que eu vivi com ela, quando garoto... por exemplo, de um menininho que ela levava para o nosso meio e que ia vender uns docinhos e lá, entre as crianças da rua Rio Grande do Sul e que ela comprava, ela pagava aqueles doces... ela não distribuía os doces porque ela deixava o menino vender, fazer o trabalhinho dele...

Trabalho social e não assistencialista...

Social e não assistencialista... ele vendia os doces, mas de qualquer forma ele não levava prejuízo, se não conseguisse vender... e aquela maldade infantil... às vezes a gente tirava o doce dele, aquelas coisas... a criança como ser perverso, de Freud (risos). Mas é isso... Havia a cidade de Hosanã, aquela cidade de órfãs, em que ela ia constantemente, e ela me levava... Eu me lembro de ela ter me levado expressamente pra conhecer aquela humanidade. E a Ismênia, que foi uma empregada, e que eu fiquei com uma memória dessa organização, da cidade de Hosanã, que era um casarão fora um pouco de Belo Horizonte, na periferia de Belo Horizonte... e a Ismênia sofria de um mal no fígado, tinha o fígado realmente muito doente, então ela tinha uma cor horrível, e era uma pessoa jovem, mas com aparência de velha, e foi nossa empregada durante muito tempo. E o humor da Ismênia, o sofrimento da Ismênia, era uma coisa que eu vi e convivi... ela trouxe pra dentro de casa... e a compaixão de Ângela o tempo todo, a preocupação com a Ismênia. Ela tirou a Ismênia daquele lugar, mais doente, possivelmente, pra um ambiente melhor e que, evidentemente, ela deve ter se beneficiado disso. Eu me lembro, vagamente, que ela não resistiu... Esses são dois episódios da minha infância, dos meus onze anos, dez anos. Depois, eu fui me dando conta do trabalho dela, me lembro do Pierre Lebret almoçando lá em casa, numas visitas que ele terá feito ao Brasil e a ligação dela com os dominicanos, com o Économie e Humanisme, com D. Timóteo, já num outro plano, acho que aí já é um plano mais transcendente, religioso... mas esse interesse social era bastante pronunciado, não é?... e a Simone Weil, um dos livros livros da Simone Weil que eu vi... ela tinha poucos livros, eu me lembro, ficava em cima da caminha dela... ela dividia o quarto no nosso apartamento da João Glicério com a Lucinha, eu me lembro da estantezinha dela, não tinha muitas coisas... tinha Rilke, tinha Simone Weil, tinham uns poucos livros... Américo Foucault, Poesia Perdida, tinha uns poetas, assim, que ela gostava...

Josué de Castro, sociólogo...

Josué de Castro... ela era ligada ao Josué de Castro, ela falava muito do Josué de Castro, conhecia... Ângela procurava os intelectuais, ela tinha, assim, uma capacidade de convívio... são poucos os nomes que eu conheço, mas certamente ela procurou muita gente... Drummond, se aproximou com aquela magnífica crônica que ele escreve... quando surge Superfície, uns seis meses depois surge uma apreciação crítica assinada por “Y” no Suplemento Literário do Estado de Minas, falando da jovem poetisa e fala... é um artigo suis nep, ele percebe tudo... ele percebe a evolução dela, ele percebe a originalidade... não propriamente a originalidade, a natureza profundamente tácita da poesia...



É o texto trazido na edição da Unicamp...

É, da Unicamp... está lá. Ângela tem uma fortuna crítica palpérrima. Uma poesia tão rica com uma pobreza de fortuna crítica. O que, aliás, fica muito bem aos verdadeiros poetas... (risos). Palpérrima, mas ao mesmo tempo de uma qualidade, de um quilate porque tem esse ensaio do Drummond que é, eu acho, admirável, umas duas ou três páginas, mas que ele percebe e distingue a grandeza da poesia dela, logo... e tem um ensaio admirável, também, do Alexandre Eulálio. Eu acho que são duas peças formidáveis.

Você acha que estas questões todas, somadas ao agravamento da doença dela, vão parar em seus poemas ou não, isto não é mote para ela escrever?

Eu acho que uma dominante de Ângela, que dá uma força extraordinária à poesia dela...

Digo isto porque Poemas de Agosto têm a ver com o período de agravamento da doença dela...

Tem... são poemas que ela fez em pleno... e que é uma coisa extraordinária, porque nós conversamos muito, ela muito doente no período, ela conversou comigo e com grande lucidez, e deixou, inclusive, um bilhete pra mim, embora eu, enfim, aí um parêntese... ela me fez “testamenteiro” dela, literário, vamos dizer assim... Então, ela deixou toda obra dela... mas eu não tinha nenhuma capacidade de organização nem de vida nem de... tinha um interesse imenso e uma culpa colossal porque não conseguia tratar com aquele material como devia. E a minha irmã, Maria Lúcia, que fez um trabalho formidável... Lucinha tinha uma atividade, uma capacidade de realizar coisas muito grande, então ela pegou e fez a primeira edição com o Ministério da Educação, levou esse material todo e... Na realidade, quem fez o trabalho que eu devia ter feito e que Ângela achou que eu seria capaz e, por isso, deixou comigo, foi Lucinha. Ela fez as duas edições. A terceira já é um interesse pela própria poesia que transcende a família, veio da Unicamp. Mas as duas primeiras edições que circularam de Ângela, que levaram à terceira, certamente, se deve à Lucinha. Enfim, a questão da doença... ela deixou esse bilhete pra mim, dizendo o seguinte: “Olha, os Poemas de agosto...”, que ela fez durante o período de tratamento e isolamento dela, ganhariam muito se fossem... se os elementos circunstanciais..., se a gente conseguisse eliminar, se eu conseguisse, se eu tivesse conseguido eliminar os elementos circunstanciais. Eu não sei ao que ela... ao mesmo tempo sei e não sei ao que ela se refere, porque são poemas de uma meditação, de uma força, de um estranhamento, de uma realidade... da realidade profunda da poesia dela, que é uma poesia dominada pelo sentido de vida e morte, é uma coisa que está nesse plano. O tempo todo esse sentido da finitude, de estranhamento da vida, de certezas transcendentes, de visões, quase, transcendentes... ela não é uma visionária, mas é de uma força de abstração, de captação de um mundo que está além das aparências, vamos dizer assim... de um nervo profundo, de um magma... é o que dá uma metafísica concreta, uma metafísica que não se explica por nenhum outro, e aí eu acho que é uma poesia, até numa certa pedida, antirreligiosa, num certo sentido... ela não transmite nenhuma crença, a não ser em poucos poemas, mas mesmo naquela fase de circunstância: natal,... tem uns poemas assim, mas a coisa da finitude da matéria, é uma poesia, é uma metafísica materializada. Enfim, eu acho que a doença, nisso, operou um sentido progressivo, numa consciência dessa, porque uma pessoa conviver com essa ordem de complexidade eu acho que não é... a vida é uma doença (risos), é uma realidade para todos nós. Mas uma pessoa com a consistência de Ângela e com... não é projeto, poeta não tem projeto, mas com a vida e a percepção dela, eu acho que a doença é um dado de conhecimento, é um dado permanente de convívio, pelo menos... mesmo ela não-doente, vamos dizer assim, no período em que ela não estava clinicamente doente, eu acho que você pode encontrar ali o elemento não propriamente da doença, mas do que a doença representa como estranhamento da vida, como distanciamento da vida, como indagação de coisas que, de certa maneira, têm não-têm a ver com a vida. Que dizer, é uma poesia cheia de paradoxos, cheia de contradições, de tensões, de nervos, uma fibrilatura muito intensa.

Como era a convivência numa família de poetas? Havia muito “ciúmes”?

De fato é uma coisa interessante porque é uma família... os Alvim são uma família de fazendeiros; a primeira geração que se urbaniza, origem que eu falo é ali por Ubá, Zona da Mata Mineira, por ali é que nós surgimos... naquela região do Paraíba, Vale do Café, da produção do café... meus avós paternos tinham fazendas ali, então, eu não falo da família de minha mãe que é uma outra vertente... eles são de Belo Horizonte, Costa Cruz, é uma outra gente, já urbanizada há muitas gerações. Então, uma família que, de certa maneira, com curiosidades intelectuais e tudo mais no tempo... Eu acho que Ângela exerceu uma liderança extraordinária na família. Todos, de certa maneira, todos nós fomos contaminados, ou diretamente, ou uns contaminaram os outros por ela. Lucinha pegou o lado plástico, possivelmente ela lhe dirá melhor do que eu como é que foi esse convívio, se é que ela reconhece que Ângela tenha tido alguma influência sobre ela direto nesse plano na revelação da parte da criação. E Lucinha descobre papai, Lucinha é que puxa papai, já mais velho, ele começa por volta dos quarenta e poucos anos, quarenta e cinco anos, a fazer umas máscaras, a brincar com miolo de pão e os personagens..., era um homem com uma capacidade, uma fabulação, uma imaginação fulgurante e muito observador, muito irônico, uma prosa deliciosa, um coser formidável, então ele fazia esses trabalhinhos das massas pensando nos personagens que ele tinha conhecido nas fazendas, na vida dele de fazenda, ele administrou durante muitos anos as fazendas do meu avô, depois foi prefeito de Araxá... um homem com uma vida, uma riqueza de experiência muito grande, então ele compunha esses tipos com miolo de pão. Lucinha foi percebendo, já interessada em artes plásticas, muito jovem também, foi puxando e tirou de papai, levou, deu uma massa, aquela massa de brincadeira de menino, ele começou fazer aquilo dentro de umas caixinhas formidáveis, com aqueles tipos todos... (eu não sei por onde é que andam essas caixinhas...), depois passou para erva de passarinho, que há nas goiabeiras... as ervas de passarinho provocam aquelas florescências, então o pessoal fazia uns galos, e Lucinha sempre estimulando, trazendo... até que ele chega a madeira. E no meu caso, Ângela levou através disso, eu já contei um pouco essa experiência, nossa iniciação literária. Depois Lucinha, um pouco mais tarde, ela pega essa veia da poesia, começa a trabalhar com a poesia.

Sempre uma relação de generosidade, colaboração...

Sempre, sempre... Era de uma admiração. Ângela despertava entre nós uma admiração muito grande. Maurício, se você tiver oportunidade também de falar com ele, uma pessoa extraordinária e com uma relação muito peculiar. Ângela era grande companheira dele na primeira infância. A diferença de idade não chega a um ano. Ele nasceu nove meses exatos depois que mamãe teve Ângela, se acompanharam a vida inteira. E Faustinho acaba, também, tardiamente.... Faustinho a cabeça era mais de um cientista, ele era matemático, tutor... de uma inteligência fulgurante, os amigos reconhecem, falam até hoje, a repercussão que tinha no meio acadêmico aqui, em vários lugares por onde ele andou, porque era um interesse intelectual inesgotável: psicanálise, literatura... e acaba fazendo, também, um trabalho literário interessantíssimo, muito bonito... tem poemas realmente formidáveis dele que chega... a revelação da poesia pra ele, chega ele já maduro, mais de... enfim, já homem feito. Ele faz uns poemas muito bonitos.

Como o irmão e literato Francisco Alvim encara o trabalho da irmã? Sente-se na missão de divulgá-lo? A família pensa nisso?

Eu particularmente, claro,.. sim. Sempre que eu pude, falei, procurei..., não fiz o que devia, quer dizer, tenho, também, uma dívida com relação a ela, absolutamente impagável, porque ela me deu tudo, literariamente, e recebeu muito pouco de mim. Por circunstâncias de vida. Primeiro, porque... por uma série de coisas... a minha vida não foi uma vida organizada, eu tive várias coisas, embora aparentemente... entrei em diplomacia... essas coisas todas... mas as minhas limitações... enfim, o meu itinerário foi um itinerário complicado e eu não soube me organizar, minha formação é uma formação muito desequilibrada, não é sistemática, e eu não tenho, nunca desenvolvi um trabalho, sempre reagi às minhas provocações nesse sentido foram sempre reativas mais do que pró-ativas, vamos dizer assim. Então, de certa maneira também as circunstâncias de vida me ajudaram. Primeiro, por ter tido uma irmã que tive. Depois, amigos... e isso de uma certa projeção no meu trabalho, e aí me pediram artigos, me pediram coisas, e eu fui respondendo às obrigações, aquilo tudo visto como uma obrigação e uma dificuldade grande para escrever qualquer coisa, coisa com coisa, pela falta justamente da disciplina, de uma procura sistemática. A poesia comigo acontece, se é que acontece, de uma maneira muito anárquica e pouco programada. Isto tudo se reflete nessa pobreza da minha contribuição com relação a Ângela. Eu procuro compensar, de certa maneira, na própria poesia. Primeiro, na presença de Ângela na minha poesia que eu acho que é visível. Quer dizer, tem uma parte ali que de certa maneira eu dou continuidade... dou continuidade não, eu participo da voz dela. Ela me “engole”, vamos dizer assim. Essa é uma contribuição que eu tenho certeza que é onde eu poderia... Alguns poemas mais diretos. Volta e meia ela aparece nos meus versos. Hoje mesmo eu estava vendo um que eu nem assinalei... Em geral eu assinava. Tem um poema em Passatempo que eu falo do amor e eu tiro uma frase do... o título é amor...

Do Cortador de linho...

É... do Cortador de linho...“o amor é água”, é uma coisa assim. Esse outro aparece no Elefante, que é assim: “aventura humana e dura”, é um verso dela; eu não pus que era porque eu achava que interferiria e não podia; é um assalto e que as pessoas descubram que é um assalto. Mas são sinais... mas não é esse sinal que é importante. É a presença que é muito forte. É muito forte e está, talvez, até além da poesia. É uma revelação que vai além, tem a ver com esse mundo que é pré-palavra, que a poesia dela traz. É uma voz do silêncio, uma coisa que tem a ver com a natureza humana profunda.

O Alexandre Eulálio que propõe isso, não é? Ela fala no silêncio...

Que é uma coisa que é quase... é uma coisa profunda, não é literatura. É uma coisa do mistério, ou do enigma, ou dessas palavras que não significam nada na vida... uma coisa que é anterior à escrita.

Haveria uma trilha na poesia brasileira que poderia ser atribuída a Ângela ou uma trilha onde Ângela pudesse ser encaixada?

Bom, tudo é “encaixável”, sobretudo no estudo, e eu acho que isso é uma tendência geral da crítica, é um pouco do trabalho, é uma das dimensões da crítica, não é exclusiva, existem outras dimensões da crítica literária, mas uma das dimensões da crítica é exatamente classificar, procurar o sentido de contigüidade e continuidade, os estilos, é claro que isso tem a contrapartida que você pode encontrar neste tipo de tendência da crítica, também, do que há de reducionismo, porque aí você está sempre preocupado em colocar as pessoas dentro de um grupo, e poesia, então, isso é muito freqüente mais do que em prosa até, talvez. Estilos de época, essas coisas... mas também tem uma verdade, reduzem o poeta. Não há sombra de dúvida que todos viram uma espécie... tudo é pasteurizado, vira tudo uma... você entende a época, mas não entende a voz do poeta, que desaparece, muitas vezes, neste tipo de abordagem. Mas é inevitável e é muito útil. Porque ninguém escreve no vazio, claro. Embora também se escreva profundamente cada poesia, cada poesia inaugural, auroral, que tenha a força da poesia, inevitavelmente se escreve no vazio. Quando você vê um poeta como Rimbaud, como Baudelaire, como Ângela... você sente a invisibilidade, a novidade... é uma língua quase que adâmica, ela se surge, isso tem na poesia de extraordinário, ela surge e morre em cada instante, em cada palavra. Nós não estamos falando dentro desse plano, estamos falando do outro, da contigüidade. Acho que ela escreve dentro do contexto da geração... Que que tinha? Tinha a Geração de 45, mas nela eu sinto uma força e um nervo que eu não vejo nos poetas, ou pelo menos, que a distingue... é um estilo mais denso, um nervo mais intencionado, uma experiência de vida que não é ornamental, não é epifânica, não é exultante, ou mesmo esteticamente... que você sente em tantos poetas daquela geração: uma poesia conquistada, uma poesia de gente que manipula o verso, a técnica... Ângela você sente, embora ela seja, tenha sonetos admiráveis na forma, na coisa... a dificuldade da... você sente que é uma linguagem que não tem facilidade nenhuma, que é uma procura constante, é tétrica...
Experimental, quase...

É quase experimental, é quase, num certo sentido, embora não seja uma poeta concreta, é uma poesia de uma “concreção” absoluta, muito maior e de uma abstração equivalente. Quer dizer, é o tal paradoxo, as forças do paradoxo, não é? Então ela tem... mas sem dúvida muito do clima daquela geração que estava em Drummond, que estava em Rilke, era uma geração que lia profundamente Rilke, gostava de Rilke... e ela deve ter percebido. E com poetas, eu dizia agora pouco, como Bueno da Riviera que se distinguiam, também, pela força da... que não se confundiam com aquele estilo mais aparente. Eu acho que ela se cria um pouco nesse ambiente.

Buscando reunir a fortuna crítica de Ângela, percebe-se que sua produção rompeu as fronteiras do Brasil. Sua obra já foi publicada na França, em Portugal e, ao mesmo tempo, o país não conhece Ângela Alvim. O brasileiro não conhece o Brasil?

É verdade. São coisas que a gente não sabe direito como explicar. Eu, por exemplo, que viajei... muitas pessoas não... muitas pessoas eu não diria, o pouco público que Ângela ainda... pode até pensar, ligando ao irmão, achando que há uma atuação qualquer que eu tenha tido nas minhas viagens, meus contatos... e não tem nada a ver, eu nunca... eu tive pouquíssimos contatos no exterior com poetas, com poesia em geral e lamento, aliás, de não ter tido oportunidade ou não ter sabido aproveitar as oportunidades, porque eu poderia ter... enfim... Então são coisas que a poesia dela  que foi despertando núcleos de interesse que extrapolavam as nossas, como você disse, as nossas fronteiras. Esses caminhos são curiosos porque eu teria muita curiosidade em saber como é que essas... às vezes eu sei, mas ou menos porque... uma vez eu estava lá, naquele último ano Brasil-França, um ano literário e aí me convidaram pra fazer parte da delegação brasileira e eu estava lá, numa conferência na Casa da América Latina, um grupo de poetas brasileiros, e eu entre eles, e aí uma pergunta, um cidadão francês perguntou: “Você, por acaso, é parente da Maria Ângela Alvim?”... depois eu procurei desesperadamente este sujeito, num intervalo lá que houve, pra ver se identificava quem era, ninguém soube me dizer, o sujeito desapareceu. Quer dizer, são coisas que acontecem, não é? O Max de Carvalho que fez as traduções que,xtremamente carinhosa açao çoes,eceu. em era, ninguem ntervalo l,, s  são admiráveis, são muito bonitas... é um livro cuidadosíssimo, com uma apresentação extremamente carinhosa, extremamente competente, bem organizado e muito bem introduzido. Ele e a Magali, a mulher dele, que fizeram a tradução, é uma coisa estupenda. Este livro vai bater nas mãos do Herberto Hélder, em Portugal, e com o prestígio do Herberto Hélder, e com o interesse que se tomou pela poesia de Ângela, ele fez a edição portuguesa.

Hélder foi o grande motivador da poesia de Ângela em Portugal?

Eu nunca travei, com pesar, outra coisa, lógico que eu poderia ter agradecido e não agradeci, por conta da... enfim... não sei os detalhes, mas até onde eu sei a coisa se passou desse modo. Então, os livros têm os seus caminhos. Tem um amigo meu que dizia sempre: “Olha, o que é bom acaba aparecendo, não se preocupe.”. Eu acho... às vezes eu finjo que acredito nisso. Eu acho que tem um lado de destruição na vida que às vezes acaba com os poetas também. (risos)

Uma vida curta e intensa. Você considera que, mesmo em pouco tempo de produção, Ângela Alvim produziu a matriz do seu trabalho, isto é, se estivesse viva, toda sua produção seria um desdobramento do que deixou?

Isso é difícil de responder porque isso não aconteceu, simplesmente. O que aconteceu é que ela viveu trinta e três anos e deixou aquela obra que é, como diz o José Guilherme, curta mas com músculo extraordinário... ele diz algo de parecido numa apreciação que fez dela. Zé Guilherme gostava demais, José Guilherme Melquior, da poesia dela. Eu não sei, quer dizer, eu não sei o que seria se Ângela tivesse vivido, sobrevivido à doença e o que isso representaria no plano da literatura dela, como escritora.

Mas você vê no trabalho dela uma semente que pudesse vir a ser uma árvore?

Sem dúvida. Eu acho que ela tem uma obra absolutamente consistente. Exatamente, por exemplo, Rimbaud em três anos faz o que fez e você não olha aquilo... não quer mais nada. Na realidade aquilo não lhe preenche inteiramente, pra quem tem ouvido pra poesia, não pede mais nada, quer dizer, não quer continuidade nenhuma, está tudo ali.

Na sua opinião, por que é importante ler Maria Ângela Alvim? Por que Ângela Alvim deve estar nas prateleiras de bibliotecas, livrarias, academias de letras, bancos escolares...?

Muito simples. Muito, muito simples. Muito curto: porque é um poeta.

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